Como já é sabido e, se ainda não é, que assim seja, a proposta deste blog não é somente servir como uma plataforma de informações das ações da AMNRJ, mas sim de informações acadêmicas também. Não à toa foi criada esta sessão: ARTIGO, justamente para aqueles(as) atletas - e não atletas - que praticam ciência e desejam disseminar seus conhecimentos, terem mais um espaço para expor de seus trabalhos. Vale lembrar que este espaço oficialmente não é cientifico.
1-Laboratório de Fisiologia do Exercício,
Universidade Estácio de Sá (LAFIEX/UNESA). 2-Laboratório de Imunofisiologia do
Exercício, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LIFE/UERJ).
Resumo
Embora a inatividade física figure como uma
das principais causas atribuídas à mortalidade, os prejuízos provocados pelo
excesso de exercícios físicos também são uma realidade. Atletas profissionais,
amadores ou de recreação, além de praticantes de modalidades não competitivas,
são frequentemente acometidos por condições deletérias decorrentes de
treinamentos extenuantes, como lesões de origem metabólica, imunológica,
neurológica, endócrina, cardiovascular, muscular e esquelética. Neste sentido,
o objetivo da presente revisão é discutir o impacto da inatividade física no
desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, os prejuízos do overtraining, a dependência ao esforço
físico e a relação paradoxal entre seus riscos e benefícios a partir de durações
prolongadas, cargas extremas e/ou frequência alta.
Palavras-chave:
esgotamento, fadiga crônica, overreaching, sistema límbico.
Inatividade
física e doenças crônicas não transmissíveis
Embora a expectativa de vida
mundial tenha aumentado, cada vez mais pessoas são acometidas por doenças
crônicas não transmissíveis, como por exemplo, doenças cardiovasculares,
diabetes, diversos tipos de câncer, transtornos mentais, dos ossos e das
articulações (1, 2). De acordo com a Organização Mundial da
Saúde (2012) (3), além de causarem
sofrimento, dependência funcional, gastos intangíveis nos sistemas de saúde e
redução da qualidade de vida, essas doenças são responsáveis por 58,5% de todas
as mortes ocorridas no mundo. No Brasil, constituem o problema de saúde de
maior magnitude, correspondendo a 72% das causas de mortes e 75% dos gastos com
atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (4). A inatividade
física figura como uma das principais causas atribuídas à mortalidade (5).
Fadiga
crônica, exaustão, supertreinamento ou overtraining
Ainda que o esforço intenso
seja capaz de otimizar o desempenho e a saúde (6), cargas extenuantes
de estresse físico e mental podem gerar inúmeras condições deletérias. Atletas
amadores, profissionais ou de recreação são frequentemente acometidos por desordens
de origem metabólica, imunológica, neurológica, endócrina, cardiovascular, muscular
e esquelética. Essas alterações são características da síndrome do
supertreinamento ou overtraining.
Entende-se como fadiga crônica, exaustão, supertreinamento ou overtraining
a condição de má adaptação a um período crônico de estresse excessivo provocado
pelo esforço físico, que resulta em perda de desempenho e desenvolvimento de
sua síndrome (7). Os sinais e
sintomas que caracterizam a síndrome do overtraining
são os transtornos de humor e ansiedade, depressão, apatia geral, instabilidade
emocional, perda de apetite, distúrbio de sono, alterações hormonais, aumento
da frequência cardíaca de repouso e aumento da vulnerabilidade a infecções e
lesões, além de dores musculares e articulares (8-11). Diferenças individuais no tempo de
recuperação, capacidade de realizar e tolerar o esforço físico, além de outros
estímulos estressores não relacionados ao treinamento (sono, dieta, família,
estudos, trabalho, lazer e outros) podem explicar porque cada praticante
apresenta uma resposta diferente para uma mesma rotina ou planejamento de
treinamento (12).
Ocorrência
do overtraining entre beneficiários
de diferentes níveis de aptidão física
A prevalência dos sintomas
do excesso de treinamento é raramente estudada, mas estima-se que 60% dos
maratonistas, 50% dos jogadores de futebol e 33% dos jogadores de basquete já
os experimentaram (13). Entretanto, com
frequência, programas de condicionamento físico para pessoas que não objetivam
a competição envolvendo exercícios de endurance, força e velocidade também
provocam danos e efeitos colaterais agudos ou crônicos indesejáveis (14). Um dos tipos mais
comuns de danos sofridos por iniciantes é a dor muscular de início tardio,
caracterizada como uma sensação de desconforto na musculatura esquelética, que
ocorre algumas horas após o exercício físico, desencadeada por processo
inflamatório a partir de sobrecargas excessivas (15-17). Além de iniciantes, o estresse severo
provocado pelo esforço físico no ambiente não competitivo também pode levar a
complicações extremas, como no estudo de caso apresentado em 2011, durante o
congresso anual da American College of Sports Medicine (18). Três dias após uma
sessão de exercícios intensos, baseada no método CrossFit, um homem de 33 anos,
previamente assintomático e fisicamente ativo, experimentou um quadro de
rabdomiólise, síndrome grave que pode levar ao óbito e ocorre devido à morte
das fibras musculares, que liberam seu conteúdo para a corrente sanguínea,
provocando insuficiência renal aguda, letargia, fraqueza, náuseas e tontura,
por exemplo.
O
excesso de exercícios de endurance em pessoas com diferentes níveis de aptidão
física, além de lesões musculares e esqueléticas, pode induzir o remodelamento
patológico de estruturas do coração e artérias adjacentes (19). Maratonas,
ultramaratonas, triátlons, corridas de bicicleta muito longas, podem causar
sobrecarga aguda de volume nos átrios e ventrículo direito, com reduções transitórias
na fração de ejeção do ventrículo direito e elevação de biomarcadores
cardíacos, os quais retornam ao normal em uma semana. Ao longo de meses e anos
de estresse repetitivo, esse processo pode resultar em fibrose do miocárdio, em
particular nas aurículas, septo interventricular e ventrículos, podendo
desenvolver fibrilações e arritmias, pois o músculo cardíaco também está
suscetível ao processo de rompimento e morte de suas fibras (19, 20).
Dependência
ao exercício
O vício em exercícios
físicos é um tipo de dependência não química, onde o beneficiário apresenta um
comportamento compulsivo, perdendo o controle sobre a intensidade, duração e
frequência da atividade praticada em função de seu prazer proporcionado. O
nível de dependência ao exercício vem sendo estudado em corredores e
maratonistas, mas ainda não foi explorado ou é escasso em praticantes de outras
modalidades. Grave et al. (2008) (21) consideram adicto o
indivíduo que se exercita por três horas ao dia com a frequência de cinco
sessões semanais, totalizando uma média de 15 horas semanais. Segundo Kjelsas
et al. (2003) (22), “baixa atividade
física” é o acúmulo de cinco a 10 horas semanais e “alta atividade física” é a
prática de mais de 10 horas semanais de esforço físico.
Alterações comportamentais,
cognitivas e eletrocorticais são moduladas por diferentes intensidades e
durações do exercício agudo. Jovens fisicamente ativos apresentam um aumento da
atividade em áreas do sistema límbico cerebral, regiões relacionadas com o
prazer, emoções e recompensas (23, 24). De acordo com a
teoria do processo oponente ou hipótese hedonista (25), testada
inicialmente em paraquedistas e expandida para outras situações onde há estresse
físico, desafio e riscos envolvidos, um estímulo inicialmente aversivo pode
gerar um prazer rebote muito intenso, promovendo reforços positivos. Medo, dor
e/ou ansiedade, por exemplo, quando superados, poderiam provocar orgasmos
cerebrais. Isso poderia explicar as razões pelas quais maratonistas, lutadores
de MMA, surfistas de ondas gigantes, praticantes de esportes de aventura ou
qualquer outra modalidade onde há riscos, alta intensidade, desafio e até mesmo
dor, tornem-se viciados em suas modalidades.
Discussões sobre o nível de
dependência ao exercício entre diferentes modalidades, a prevalência de lesões
musculoesqueléticas e a vulnerabilidade imunológica, por exemplo, constituem
assuntos promissores nas ciências do exercício e esporte, podendo contribuir
com um melhor entendimento sobre a linha tênue entre prejuízos e benefícios de
sucessivas sessões exaustivas de esforço.
Linha
tênue entre riscos e benefícios
O
exercício físico, através de durações prolongadas, cargas extremas e/ou frequência
alta pode apresentar uma linha tênue entre riscos e benefícios, caracterizando uma
relação paradoxal. Como benefícios potenciais há praticantes que podem
experimentar ativações no sistema límbico de recompensas cerebral, sensações de
prazer e bem-estar, além de aumentos no gasto energético e reduções ou
manutenções na distribuição da gordura corporal. Se a perturbação da homeostase
for devidamente programada e avaliada ao longo de um ciclo de treinamento,
ainda que ocorra uma exaustão temporária induzida pelo excesso de treinamento, é
possível reverter o status de
esgotamento, recuperar a constância interna e aprimorar o rendimento através da
supercompensação fisiológica. Overreaching
é justamente a exaustão temporária seguida da supercompensação fisiológica,
porém, ao contrário do overtraining que
requer meses, sua recuperação é relativamente fácil de ocorrer em curto prazo,
entre uma a quatro semanas (26), período conhecido
como tapering ou polimento.
Por outro lado, se mal avaliado, um programa de condicionamento ou treinamento físico pode provocar o overtraining, lesões celulares e funcionais, reduzindo a adesão ao exercício físico e, consequentemente, aumentando as estatísticas de inatividade física e doenças crônicas não transmissíveis.
Tabela 1. Riscos e benefícios do exercício
físico em durações prolongadas, cargas extremas e/ou frequência alta.
Benefícios potenciais
|
Riscos potenciais
|
Ativação do sistema
límbico de recompensas do cérebro;
|
Síndrome do overtraining,
lesões celulares e funcionais;
|
Prazer, “onda”, “barato”, vício (“positivo”?);
|
Remodelamento
patológico do coração e arritmias;
|
Aumento do gasto
calórico, redução da gordura corporal;
|
Perda de desempenho e
saúde;
|
Overreaching.
|
Redução da adesão ao
exercício;
|
|
Desenvolvimento ou
agravamento de doenças crônicas não transmissíveis.
|
Considerações finais
O exercício físico vem sendo considerado um remédio milagroso, porém, dependendo da dose, pode piorar o desempenho, gerar lesões irreversíveis e até levar a óbito. Profissionais da saúde, praticantes dos mais variados níveis de aptidão física e finalidades esportivas devem estar atentos e monitorar constantemente os níveis de esgotamento físico e mental. De acordo com o conceito hormese, respostas biológicas geralmente favoráveis ocorrem em função da exposição devidamente controlada a estímulos estressores (27). Logo, o exercício físico pode ser remédio ou veneno, dependendo da dose. O aumento da predisposição do organismo humano à inúmeras doenças, a partir do exercício enquanto veneno, é incompatível com os valores e postulados da saúde pública.
A linha tênue entre prejuízos e benefícios de sucessivas sessões fatigantes de esforço não depende exclusivamente do entendimento de conceitos e princípios metodológicos do treinamento. O exercício físico pode apresentar uma relação paradoxal e sua prescrição consistente em termos de saúde pública depende de uma melhor compreensão sobre seus efeitos no desempenho, qualidade de vida e possíveis mecanismos associados.
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